sexta-feira, 25 de dezembro de 2015

Como leitor, o que eu gosto é de ler e dizer, bolas, é exactamente isto que eu sinto e não era capaz de exprimir. (Lobo Antunes)

Publicado em  por Pedro Norton
O Hop­per a adi­vi­nhar a sede do Tiago
Três dias antes de mor­rer o Tiago ten­tou ligar-me. Os médi­cos tinham lhe expli­cado que iam adormecê-lo e ele per­ce­beu, com aquela cer­teza serena com que foi per­ce­bendo tudo, que não vol­ta­ria a acor­dar. Eu tinha o tele­mó­vel des­li­gado. Estava numa qual­quer reu­nião ridi­cu­la­mente impor­tante (a vida está cheia de reu­niões de uma impor­tân­cia ridí­cula). E nunca recebi a chamada.
O Tiago não falou para se des­pe­dir. Nem muito menos tele­fo­nou para se quei­xar. De resto o Tiago rara­mente tinha tempo para pen­sar em si pró­prio. A voca­ção para anjo da guarda dá muito tra­ba­lho. O Tiago falou para me sos­se­gar. Para me dizer que não me pre­o­cu­passe. Que não have­ria de ser nada.
O Tiago ligou para me falar do Rapaz de Veludo. O mesmo que tínha­mos conhe­cido jun­tos e em voz alta, numa das mui­tas tar­des gela­das desse Inverno de hos­pi­tal em que nos aque­cía­mos com as nos­sas lei­tu­ras pre­fe­ri­das. O mesmo com que nos tínha­mos rido a bom rir do espanto dos ciclós­to­mos quando se lhes falava da «cons­tru­ção de lam­preias de ovos pelas pas­te­la­rias da baixa». O mesmo com que nos tínha­mos rido da «sno­beira» dos cher­nes que não pre­ci­sa­vam de molho branco, que des­pre­za­vam as pes­ca­das e se ati­ra­vam às garou­pas «para apa­nha­rem lin­gua­dos». O mesmo com que, jun­tos, tínha­mos cho­rado a eterna hori­zon­ta­li­dade dos mor­tos peque­nos «arre­ba­ta­dos de praias pelo des­cuido de cri­a­das paro­las». O tal com que tínha­mos assis­tido, em silên­cio, à pas­sa­gem de «cava­lei­ros anda­lu­zes sem cava­los com rédeas de poder e tan­ge­ri­nas de malabaristas».
O Tiago ligou para me dizer que, tal como no sonho da Mãe e no conto do poeta, tinha che­gado a sua hora de entrar pelo mar den­tro. Ou tal­vez tivesse pre­fe­rido dizer «pelo orva­lho den­tro». Seja como for, ligou para me garan­tir que nos vol­ta­ría­mos a encon­trar. Ligou para me lem­brar que isto de viver no fundo do mar dá uma sede dos diabos.
E é essa sede angus­ti­ada do meu Rapaz de Veludo que me deixa, tam­bém a mim, com a serena cer­teza de que um dia des­tes, ao des­cer a Rua do Ouro, hei de entrar «numa daque­las lojas que são misto de café, lei­ta­ria e casa de pasto», hei de pedir uma cer­veja bem fresca que me saberá «pela alma» e hei de dar com o Tiago «sen­tado a um canto a tomar um copo de água gelada».

(*) Este texto, publiquei-o na Visão, há cerca de 14 anos. Tan­tos quan­tos os anos em que o Tiago se foi fazendo em mim. Resolvi republicá-lo. Por ele, por mim, por todos os que com ele entre­tanto se sen­ta­ram (e foram tan­tos), por todos os que com ele se sen­ta­rão, mas sobre­tudo por todos os que, vendo-os ir, ganha­rão, estou disso seguro, aos pou­cos, a cer­teza serena de encon­trar as suas par­ti­cu­la­rís­si­mas casas de pasto ao des­cer a Rua do Ouro.


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