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O Hopper a adivinhar a sede do Tiago |
Três dias antes de morrer o Tiago tentou ligar-me. Os médicos
tinham lhe explicado que iam adormecê-lo e ele percebeu, com aquela certeza
serena com que foi percebendo tudo, que não voltaria a acordar. Eu tinha o
telemóvel desligado. Estava numa qualquer reunião ridiculamente importante
(a vida está cheia de reuniões de uma importância ridícula). E nunca recebi
a chamada.
O Tiago não falou para se despedir. Nem muito menos telefonou
para se queixar. De resto o Tiago raramente tinha tempo para pensar em si
próprio. A vocação para anjo da guarda dá muito trabalho. O Tiago falou
para me sossegar. Para me dizer que não me preocupasse. Que não haveria
de ser nada.
O Tiago ligou para me falar do Rapaz de Veludo. O mesmo que tínhamos
conhecido juntos e em voz alta, numa das muitas tardes geladas desse
Inverno de hospital em que nos aquecíamos com as nossas leituras preferidas.
O mesmo com que nos tínhamos rido a bom rir do espanto dos ciclóstomos
quando se lhes falava da «construção de lampreias de ovos pelas pastelarias
da baixa». O mesmo com que nos tínhamos rido da «snobeira» dos chernes que
não precisavam de molho branco, que desprezavam as pescadas e se atiravam
às garoupas «para apanharem linguados». O mesmo com que, juntos, tínhamos
chorado a eterna horizontalidade dos mortos pequenos «arrebatados de
praias pelo descuido de criadas parolas». O tal com que tínhamos assistido,
em silêncio, à passagem de «cavaleiros andaluzes sem cavalos com rédeas
de poder e tangerinas de malabaristas».
O Tiago ligou para me dizer que, tal como no sonho da Mãe e no
conto do poeta, tinha chegado a sua hora de entrar pelo mar dentro. Ou talvez
tivesse preferido dizer «pelo orvalho dentro». Seja como for, ligou para me
garantir que nos voltaríamos a encontrar. Ligou para me lembrar que isto
de viver no fundo do mar dá uma sede dos diabos.
E é essa sede angustiada do meu Rapaz de Veludo que me deixa,
também a mim, com a serena certeza de que um dia destes, ao descer a Rua do
Ouro, hei de entrar «numa daquelas lojas que são misto de café, leitaria e
casa de pasto», hei de pedir uma cerveja bem fresca que me saberá «pela alma»
e hei de dar com o Tiago «sentado a um canto a tomar um copo de água gelada».
(*) Este texto, publiquei-o na Visão, há cerca de 14 anos. Tantos
quantos os anos em que o Tiago se foi fazendo em mim. Resolvi republicá-lo. Por ele,
por mim, por todos os que com ele entretanto se sentaram (e foram tantos),
por todos os que com ele se sentarão, mas sobretudo por todos os que,
vendo-os ir, ganharão, estou disso seguro, aos poucos, a certeza serena
de encontrar as suas particularíssimas casas de pasto ao descer a Rua
do Ouro.