Carta-Aberta ao Ministro da Educação
Carta-Aberta ao Ministro da Educação da Professora Maria do Carmo
Vieira, divulgada no jornal Público de hoje. (05-05-20169
É impossível continuar a sujeitar a comunidade escolar à instabilidade que representa a contínua mudança de programas, sempre que surge novo Governo.
É impossível continuar a sujeitar a comunidade escolar à instabilidade que representa a contínua mudança de programas, sempre que surge novo Governo.
Como investigador e pessoa estudiosa e de conhecimento que é, Senhor Ministro
da Educação, compreenderá a violência que é impor a um professor determinadas
inovações que colidem frontalmente com o seu estudo, com o conhecimento da sua
área de ensino, no caso explícito, de Português, e com a sua própria
experiência. Na verdade, violenta é toda a imposição da novidade pela novidade,
quantas vezes ligada a interesses pessoais e a lobbies ou a teorias que já
demonstraram o seu completo falhanço, noutros países, ou até à atitude juvenil
de transgredir. Violento é também que se queira punir quem ouse dizer o
contrário.
A minha experiência profissional testemunha o que anteriormente expus, e duas
situações, entre várias, serão suficientes para ilustrá-lo: a primeira
prende-se com uma acção de formação de um dia, dinamizada por dois jovens
contadores de histórias, já inseridos no espírito da última Reforma de 2003, e
que percorriam o país, apresentando as suas sugestões inovadoras a alunos e
professores. Tentavam que compreendêssemos, numa grande euforia discursiva e
gestual, quão rotineiro e maçudo era para as crianças o início das histórias,
com o “papagueamento” da célebre frase “Era uma vez…”, que na sua douta visão
nada tinha de mágico. Assim, para interromper essa monotonia e arejar a própria
história, libertando-a do fundo dos tempos, davam como exemplo de salutar
início “Uma vez era…”, alteração, diziam, a que as crianças tinham reagido
muito bem. Parece que a boa nova teve tempo efémero de existência, ainda que a
actividade dos inovadores se mantivesse, durante algum tempo, e muitos
professores tentassem, curiosos, analisar os seus efeitos que, no entanto,
nunca foram descritos.
A segunda situação tem a ver com a atitude do Ministério da Educação (ME), no
final do ano lectivo de 2006, após ter recebido uma carta minha, endereçada à
Senhora Ministra, na qual eu analisava criticamente os novos programas e os
manuais, concluindo da minha impossibilidade em cumprir o que considerava um
absurdo e uma imensa falta de respeito pelos alunos, pondo em causa, se
obedecesse, a minha responsabilidade e a minha competência profissionais.
Mencionava também o facto de não compreender bem o alcance de “um ensino
centrado nos alunos”, ou a quase exclusividade atribuída ao trabalho de grupo
ou ainda a quase proibição de aulas expositivas. Essa carta, depois reenviada
digitalmente pelo ME ao Conselho Directivo da minha Escola, com a informação de
que não me deveriam dar conhecimento, apresentava sublinhados todos os verbos
que recusavam o cumprimento de uma matéria programática absurda que, a meu ver,
estupidificava.
Na mesma mensagem, o ME solicitava à Escola que enviasse, no prazo de 48 horas,
todas as notas que eu atribuíra aos alunos. Por impossibilidade de o fazer,
aceitou o ME que fossem apenas as classificações dos últimos 5 anos. Nada
vislumbrando de errado, solicitaram o curriculum, tendo a tentativa de
amedrontar ficado por aqui. O certo é que não leccionei os novos programas,
indo para o ensino nocturno onde não estavam em vigor, e tendo também
interrompido a correcção de provas de exames do 12.º ano, trabalho que troquei
por uma avalancha de vigilâncias de exames. Poder-lhe-ei acrescentar, Senhor
Ministro, que um dos aspectos criticados por mim, nos programas, foi a
supremacia dada ao texto funcional, em detrimento do texto literário, e o saque
que havia sido feito aos clássicos. Talvez desconheça que se aconselhava o
estudo da lírica de Camões com “2 ou 3 dos seus melhores sonetos”, sugestão que
certamente considerará inaceitável, logo, ofensiva para qualquer professor.
Louvo, ainda que considere demasiado extensos, os novos programas de Português
do Básico e do Secundário, não só pelos autores terem sublinhado a necessidade
do estudo da Gramática, mas também a importância da Literatura, enquanto arte
da palavra e imprescindível numa reflexão sobre a condição humana, e que por
isso mesmo não pode estar em pé de igualdade com um texto de carácter
utilitário, aspectos que certamente serão tidos em conta nesta reflexão sobre o
“Currículo para o século XXI” que teve lugar na Gulbenkian.
Compreenderá, Senhor Ministro, que é impossível continuar a sujeitar a
comunidade escolar à instabilidade que representa a contínua mudança de
programas, sempre que surge novo Governo. Ter-se-á agora a oportunidade de
mostrar a vontade em conciliar ideias e sugestões, apresentadas na Gulbenkian,
e expressas também nos questionários preenchidos pelos professores, evitando
reacender conflitos, em troca de um diálogo frutuoso, neste caso, entre as duas
associações que existem de Português. De aproveitar será também o facto de os
professores terem manifestado favoravelmente a influência das metas
curriculares na sua prática lectiva.
E porque, inúmeras vezes, tem sido referido pelos professores o caos que a
imposição do Acordo Ortográfico de 90 (AO) trouxe ao ensino da Língua
Portuguesa, evidenciando também a violência que foi na prática lectiva o serem
forçados a cumpri-lo, cremos que há toda a urgência, porque de um património se
trata, em repensar este assunto, tanto mais que o próprio Presidente da
República também nele parece estar interessado. Será certamente do conhecimento
do Senhor Ministro o parecer veementemente desfavorável, apresentado pelo
próprio ME (1991), mas lamentavelmente ignorado, num testemunho manifesto de
falta de respeito e de grave falha democrática.
Invocando de novo, Senhor Ministro, a sua qualidade de investigador, exigente e
rigoroso, porque assim se caracteriza toda a investigação, concordará decerto
que a Nota Explicativa do AO de 90 carece precisamente de exigência e de rigor,
havendo ainda a notar casos anedóticos na sua redacção. O caos na ortografia da
língua portuguesa está patente em todo o lado, indo-se para além do que se quis
impor, como poderá verificar na frase que transcrevo “[…]. A nossa Saudade é,
de fato, única, […]” (in programa de “Música Sem Fronteiras”), um entre
milhares de exemplos que diariamente encontramos.
Preocupados estão igualmente os professores, mormente os de Português, com as
sugestões, no mínimo, ridículas, para favorecer a dita “linguagem inclusiva”,
situação que parece não ocorrer só em Portugal, mas também em Espanha.
Servem-se da língua para inovações que os orgulham e que mais não significam do
que algum tipo de frustração e muita arrogância, no prazer de impor
estupidamente a sua vontade. Primeiro tentou-se a “presidenta”, logo, também “a
estudanta”, qualquer dia alterar-se-á “o povo” e agora propõe-se “cartão de
cidadania” em substituição de “cartão de cidadão”, ignorando-se o significado
de cada uma das palavras (basta consultar o dicionário) e o erro que será
cometido, obedecendo-se a esta proposta. E se o outro “género” não gostar que a
palavra termine no feminino? Esquarteja-se a palavra até que fique com um
aspecto andrógino? Não pode a Língua Portuguesa estar submetida a estes
desmandos e, nesse sentido, o Ministério da Educação deveria também intervir.
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