Fascinante frequentar a escola? O meu aluno Tiago diz
que não. A maior parte das aulas são seca e, as que o não são, acabam
estragadas pelos colegas de turma que só fazem barulho. E depois, diz ele, é
tudo muito lento, muito repetido, não se avança. De repente, aparece uma
questão verdadeiramente importante, mas não se aprofunda. Fica-se pela rama.
“Pensava que ia fazer uma descoberta e desemboco num lugar-comum”.
O que é que para ele seria fascinante? Uma escola que
misturasse 3 palavras: múltipla, fluida, desafiante. Múltipla, nas
possibilidades de escolha em vez dos carreiros obrigatórios que conduzem a
quadrados alinhados. Fluida, numa interconectividade semelhante à proporcionada
via online.Desafiante, em propostas mais parecidas com o trabalho a sério do
que com exercícios escolares.
Olho para o Tiago, a pensar em tudo o que separa as
nossas gerações. Ele nos seus 15 anos e eu nos 60. A geografia da minha
adolescência desenhava-se rapidamente numas poucas ruas da minha cidade, na
linha de caminho de ferro até ao Porto, na praia de Espinho, no verão. No dizer
de Michel Serres, é uma geometria métrica, de centralidades e de distâncias.
Porém, o Tiago acede à velocidade da luz, a todos os lugares físicos ou
imaginados. A tal ponto, que uma vez comentava comigo: “a rapidez do automóvel?
É mas é enervante. Já viu o tempo absurdo que se demora a percorrer uma
distância !!! Ora uma pessoa pensa e está lá imediatamente. Assim é que devia
ser: não esta lentidão imposta pela realidade física. É como se eu tivesse de
viver num mundo que não é o meu!”.
Eu nem encontrei o que dizer.
Não é só a geografia que é completamente diferente. No
livrinho “La Petite Poucette”, de 2012, Michel Serres aponta as novidades do
mundo de hoje como uma revolução profundíssima, equivalente à de Guttenberg: as
novas tecnologias não só permitem um acesso universal aos lugares, com o GPS e
o Google Earth, aos saberes, com a Wikipedia, às pessoas com o Facebook, como
também ativam, no cérebro, novas capacidades cognitivas e imaginativas.
Os jovens de hoje estão equipados com ferramentas
extraordinariamente potentes de acesso e troca de informação e opinião. Há
possibilidades novas e variadas para fazer ouvir a sua voz, construir projetos,
avançar com ideias novas.
Corresponderá este acesso a uma verdadeira
emancipação? Tal não está assegurado. As máquinas poderosas que os jovens
manipulam de forma tão extraordinária tornam-nos mais ou menos capazes? Porque
o avanço tecnológico pode conduzir a incapacitação ou mesmo alienação. Foi o que
aconteceu com a proletarização industrial do século XIX que, desapossando o
trabalhador do seu saber fazer, o transformou no operador de uma máquina
estranha que lhe rouba a individualidade.
O que é que se ganha? O que é que se perde?
Quando vamos ainda na infância da expansão do online,
os jovens já estão formatados pelos medias que “lhes destruíram meticulosamente
a faculdade de atenção ao reduzirem a duração das imagens a 7 segundos e o
tempo de resposta a perguntas a 15. Nos ecrãs, a palavra mais vezes repetida é
morte e a imagem mais exibida a de cadáveres”. Isto, segundo ainda Michel
Serres, que avança números oficiais. Esta constatação não augura nada de bom.
Os funcionários das empresas high-tech de Silicon
Valley gastam fortunas para que os filhos frequentem escolas sem conexão
internet. Estão bem conscientes dos riscos de dispersão e de adição que o
computador transporta consigo. “ A indústria do digital é planetária e está
orientada, em primeiro lugar, para o consumo desenfreado de produtos – muitos
deles “culturais” – com um marketing agressivo e aditivo que visa a captação e
o controle cada vez mais fino das consciências e dos desejos
individuais”.
A escola poderia ter um papel essencial na criação das
condições e relações sociais para que o uso das novas tecnologias se tornasse
emancipatório. Precisaria porém de funcionamentos de cidadania em que todos
fossemos produtores, em vez de sentar os alunos em cadeiras no seu papel (mais
uma vez) de consumidores passivos. Qual é a participação do aluno na construção
da vida da escola, onde passa tantas horas?
De que modo é integrado no esforço comum de inventar
lugares e laços que permitem que todos estejamos mais presentes, mais atentos,
mais disponíveis? É incrível como arredamos os alunos do trabalho, isto é: da
construção do mundo, ao pretender protegê-los para que pudessem estudar. Hoje,
em Portugal, a criança é um objeto de luxo, inútil e frágil, envolto em
algodão, ao abrigo da realidade. Pudesse a criança escolher: não fugiria do
algodão para correr todos os riscos que lhe são devidos num mundo de verdade?
A visão de uma sociedade que – a corresponder ao que
se pronuncia – será a de indivíduos atuantes, sem o espartilho dos aparelhos ou
dos antigos grupos de pertença é potentemente transformadora dos papeis do
professor, da escola, da educação. O que pode ser fascinante, não só para o
Tiago e os colegas, mas também para nós, professores, é o comprometimento na
construção duma sociedade nova que está a nascer. Começando por construi-la dentro
da escola. Uma sociedade de funcionamentos democráticos, intervenientes e
construtivos. Com a assunção de todos os riscos que tal implica.
Nos últimos anos, parece que nós, professores, nos
sujeitamos a procedimentos muito burocraticamente conformes, para nos sentirmos
protegidos. Mas daí resulta que não nos revemos no nosso trabalho, tão pobre é
a marca pessoal que lá deixamos.
A nossa proteção é a nossa morte!
Na vida das escolas, dentro e fora da sala de aula há
falta de épico. A adolescência precisa de épico, essa confiança desmedida e
irracional na sua capacidade de fazer o mundo. Em vez disso, rotinas
anestesiantes que se substituem ao exercício livre do discernimento e da
decisão. Ninguém gosta de trabalhar com objetivos impostos. Nós não gostamos,
os alunos também não! Dentro e fora da sala de aula, é preciso que os objetivos
sejam construídos coletivamente.
Com o tipo de jovens que hoje está nas escolas, se nos
pusermos a trabalhar com eles, ombro a ombro, não podemos saber que escola
surgirá, mas adivinho-a MÚLTIPLA, FLUÍDA, DESAFIANTE. Como queria o Tiago.