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Em 2013, o adolescente
Ethan Couch, de 16 anos, provocou a morte de quatro pessoas e feriu nove,
enquanto conduzia embriagado no Texas, Estados Unidos. Os seus advogados
alegaram que o jovem sofria de uma condição chamada “affluenza” para justificar
a sua não-culpabilidade, argumentando de que a falta de valores morais e
limites se devia à permissividade dos pais. Detido no fim de 2015 por ter
violado a sua liberdade condicional e a aguardar julgamento, surgem as opiniões
– “miúdo mimado”, “reflexo de negligência parental” ou “culpa de um vírus”?
O termo “affluenza” vem
das palavras inglesas “influenza” (“gripe”, em português) e “affluence”
(“influência, riqueza”), foi popularizado nos anos 1990 e refere-se a jovens
que nunca terão aprendido a ser responsáveis nem a medir as consequências dos
seus actos. A culpa disto seria dos pais, que teriam mimado os jovens em
demasia. Mas esta condição nunca foi reconhecida pela Associação Americana de
Psicologia – “há um conjunto de comportamentos e criou-se o termo para falar
disso, mas não corresponde a um diagnóstico clínico, a comunidade não o aceita
como tal”, atesta José Morgado, especialista em psicologia de educação, em
conversa telefónica com o PÚBLICO.
A utilização desta
condição foi uma estratégia de defesa de Couch – tentar provar a instabilidade
perante um crime pesado em que o arguido é culpado é “comum” – mas “a América
tem um contexto muito particular nas questões jurídicas, com meandros muito
diferentes dos nossos”, lembra Morgado. “Não tenho a certeza se um caso com
esse figurino teria o mesmo final num país da Europa, o modelo de justiça é
muito diferente”.
Morgado admite, porém,
que há crianças e jovens que crescem com alguma desregulação ao nível dos
valores e dos limites. Há aqui algo que a sociedade não deve ignorar, defende
Suniya Luthar, professora de psicologia na Universidade do Estado de Arizona
num artigo para a agência Reuters intitulado Às vezes as ‘pobres criancinhas ricas’ são mesmo
pobres criancinhas ricas, citado pela CNN. “Há provas crescentes de
que os filhos dos ricos estão-se a tornar cada vez mais perturbados,
irresponsáveis e auto-destrutivos”, defende Luthar, que investiga as vidas de
crianças privilegiadas há 25 anos. José Morgado defende, no entanto, que “não
há uma relação directa entre ter muito dinheiro e ter um determinado tipo de
comportamento” por “uma razão simples: se houvesse uma relação causa-efeito,
todas as pessoas teriam o mesmo comportamento na mesma circunstância e isso não
se verifica”.
“São mais os estilos de
vida que podem estar ligados a determinado tipo de condição, determinados tipos
de exercício profissional, pouca presença familiar… Estes estilos podem
reflectir-se ao nível do estabelecimento da educação, os miúdos ficam mais sós,
com menos regras, com menos orientação, menos níveis de comunicação”, explica
Morgado, que trabalha directamente com pais e professores de vários colégios e
ouve queixas de determinado tipo de comportamentos. “Há pais muito ausentes
que, como têm dinheiro, compram o serviço educativo, não o exercem. Não porque
queiram ser maus pais”, continua, “mas não têm tempo, têm horários exigentes”.
Mas isto não está
relacionado, frisa o especialista, com “mimo a mais”. “Tira-me do sério a
expressão dos miúdos que têm mimos a mais. Não há ninguém que tenha mimos a
mais, são é maus mimos”, diz, sublinhando o mimo como um bem imprescindível na
vida das pessoas em qualquer idade. “Se não lhe dão mimo, se deixam fazer tudo
o que a criança ou o jovem quer, isto não é mimo, é mau mimo, é um mau serviço prestado
à criança”, enfatiza José Morgado.
Os miúdos a quem chamam
“muito mimados” são crianças “mal-educadas”, diz José Morgado. “São miúdos sem
regulação nos valores e nos limites”, que precisam de ouvir mais “nãos”.
As crianças e jovens
“precisam e querem que lhes digam o que está certo e o que está errado e
aprender a serem responsáveis e as consequências das suas acções”, frisa o
psicólogo norte-americano Harris Stratyner à CNN. “O que as pessoas não
percebem é que, para as crianças, os limites são necessários para que se sintam
seguras. Elas não são cognitivamente capazes de definir limites para si
próprias por isso precisam que nós, pais, lhes digamos ‘ok, é aqui que estou a
traçar a linha. Não podes ultrapassá-la e haverá consequências se o fizeres’”,
acrescenta Suniya Luthar.
Comunicação
é essencial
“É preciso arranjar
formas de comunicação com os miúdos”, reconhece José Morgado. Mas também é
preciso “sermos realistas”: “Não posso dizer a um pai, que tem um trabalho e
horários exigentes, para arranjar tempo. É preciso é adaptar o tempo às suas
circunstâncias de vida. Há menos tempo mas o tempo de que dispõem tem de ser
para comunicar com os miúdos”, aconselha, lembrando que a educação é feita com
base na relação e só há relação se houver comunicação. “É isto que os pais não
se podem esquecer”.
É preciso sermos
“proactivos” e ter atenção, realça o psicólogo. “Quando chegamos a casa devemos
perguntar aos jovens como correu o dia. Podem não querer falar, há a idade em
que preferem falar com os amigos dos seus grupos, mas é importante os pais
perguntarem e mostrarem que estão lá” para qualquer eventualidade, continua.
A psicoterapista
norte-americana Eileen Gallo, co-autora do livro Silver Spoon Kids: How
Successful Parents Raise Responsible Children, chama a atenção para
as conversas dos pais com os filhos não só sobre os dias de escola dos miúdos
mas também para contar os seus dias de trabalho. As conversas são “tão
importantes” nestes casos, diz à CNN, “provavelmente ainda mais nos dias de
hoje” – em que o contacto é feito através de chamadas ou troca de mensagens nas
redes sociais em vez de conversas cara-a-cara.
Os níveis de deliquência
entre pobres e ricos são “comparáveis”, diz Suniya Luthar. Independentemente
dos rendimentos e do seu lar, há sentimentos de ansiedade, depressão, crimes –
e é essencial haver figuras a seguir (role
models) e comunicação. A única diferença pode ser a forma de
quebrar as regras: nos lares das famílias de classe média-alta “o dinheiro é
abundante, por isso os jovens têm mais dinheiro para comprar drogas, álcool e
arranjar sofisticados bilhetes de identidade falsos e os pais têm dinheiro para
pagar a advogados bons”.
“Não é fácil. É confuso.
Isto de ser um pai ‘bom o suficiente’ é desconcertante. E pensar que só por que
temos mais estudos ou mais dinheiro temos as respostas certas, que sabemos a
melhor coisa a fazer para continuar a fazê-la, é um equívoco”, refere Luthar.
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