quarta-feira, 16 de março de 2016

O homem vendido por outro pode não ser escravo; o que se vendeu a si mesmo, esse é o escravo absoluto. (John Ruskin)

A fotografia de um casal branco com uma empregada negra a caminho dos protestos de domingo contra o governo divide as opiniões no Brasil. Resquícios da escravatura ou o racismo está nos olhos de quem vê?

João Valadares, o repórter que tirou a fotografia – e que não é fotografo – diz ao PÚBLICO que ela “cumpriu o objectivo”. “Um país inteiro está a debater o que é que há nessa foto, que simbolismo é esse que ela carrega.” João Valadares não estava sequer a trabalhar quando fez a fotografia. Publicou-a no seu Instagram, com mais duas variações da mesma cena, e no Facebook, apenas com a legenda “13 de Março de 2016, Ipanema”. O resto está à vista. “Isso só teve uma proporção muito grande porque a foto diz muito sobre o nosso país – sobre o nosso abismo, sobre a condição das pessoas mais pobres, sobre os negros. E é uma realidade que está à nossa frente todos os dias. É um símbolo que não é de agora. Há uma dívida gigantesca para com essa parcela enorme da população.”
Há um discurso comum entre os brasileiros insatisfeitos com 13 anos de governos do PT (Partido dos Trabalhadores) de que os programas e avanços sociais introduzidos a partir da presidência de Lula da Silva para as classes mais desfavorecidas e frequentemente negras – Bolsa Família, quotas raciais para admissão em universidades e instituições públicas, etc. – criaram uma população dependente do Estado e parasitária. “Muitas pessoas deixaram de trabalhar porque passaram a ganhar Bolsa Família”, diz Maria Villagra, secretária, 63 anos.
Profissões como empregada doméstica e babá, que antes eram informais, passaram a estar regulamentadas nos governos de Lula e Dilma Rousseff, incluindo pagamento de horas extraordinárias, subsídio de férias, segurança social, etc. A ascensão social e económica de sectores da sociedade que tradicionalmente estavam confinados à pobreza e a trabalhos de servilismo tem incomodado as elites, como o mais recente cinema brasileiro tratou de mostrar em filmes como O Som Ao Redor, de Kléber Mendonça, e Que Horas Ela Volta, de Anna Muylaert. Muitos brasileiros confessaram, candidamente, no seu Facebook, não ver o que há de errado na fotografia tirada por João Valadares no domingo. O Brasil tem dificuldades em fazer contas com o seu passado esclavagista, daí que algumas das suas manifestações mais arcaicas persistam ainda hoje.
“É uma questão que a sociedade brasileira ainda tem: o mito de que houve uma mestiçagem harmónica, de que a escravatura foi doce, de que nós nos conciliamos, de que a abolição foi feita sem tumulto”, conclui Maria Helena Machado.



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