quinta-feira, 29 de outubro de 2015

E aqueles que por obras valerosas Se vão da lei da Morte libertando... (Os Lusíadas)

Vidas singulares: George Bell (1942-2014).


O nome de George Bell nada nos dizia até há poucos dias. Até ao dia em que o New York Times fez uma extensa reportagem sobre ele. Porque morreu, não mais do que isso. Uma reportagem grande, cara de fazer, sobre a sua vida mas em especial sobre a sua morte. É estranho que alguém seja notícia só porque morreu. Obituários há muitos, mas de gente que teve uma vida digna de ser lembrada. Não merecerá a biografia de Bell sequer uma recordação? Pelos vistos, não. Trabalhou em  transportes e mudanças, reformou-se em 1996, um acidente laboral. Fora isso, pouco a registar. George só foi notícia por morrer em casa sozinho, num apartamento de Nova Iorque pejado de lixo. Morreu só, como milhares de nova-iorquinos (e não só). Cinquenta mil por ano, dizem as estatísticas. Na vida solitária de Gorge Bell houve um dia – de manhã ou de tarde – em ele que escreveu o seu nome na porta de casa, para que soubessem que morava ali. E houve dias em que gravou cassetes com músicas, e colocou uma fita a indicar o nome dos músicos que fizeram ou cantaram essas músicas, ainda que não saibamos se George Bell as ouviu, ou não. Dele pouco sabemos, mesmo numa reportagem extensa do New York Times. Sabemos  que morreu só, pouco mais. No funeral não apareceu ninguém. A cremação foi acompanhada pelos funcionários municipais que tratam destes assuntos lutuosos. Uma cremação demora, dizem, cerca de três horas. Onde apareceu muita gente, uma multidão de gente, foi no leilão do seu carro, um Toyota de 2005. É estranho pensar que apareceu mais gente para lhe comprar o carro do que no seu funeral.

George, ao que parece, era muito apegado aos seus pais, de ascendência escocesa. Uma fotografia mostra-o novinho, ao lado do pai, no Natal de 1956, com árvore enfeitada e TV de sala. O pai morreu cedo. À medida que foi envelhecendo, a mãe começou a sofrer de artrite. George tratou dela com carinho e desvelo, levando-lhe comida, dando-lhe banho até  morrer. Com George as coisas não se passaram assim. Não casou nem teve filhos. Chegou a estar noivo, mas rompeu o noivado por não aceitar as exigências contratuais da futura sogra. A noiva casou com outro homem, que morreu há anos, em 2002. No entanto, George e Eleanore, assim se chamava ela, continuaram a trocar cartas ao longo de muitos anos. No último cartão que lhe mandou, no Dia dos Namorados, Eleanore disse-lhe que pensava muitas vezes nele, ademais com amor. Eleanore também vivia sozinha, carregada de dívidas, e morreu em casa de ataque cardíaco. Foi cremada, George nem soube do óbito. Mas incluiu-a no seu testamento. É estúpido tentar saber se George Bell foi um homem feliz. E talvez seja indigno destapar a sua intimidade apenas porque morreu sozinho. Muito possivelmente, a sua vida foi demasiado solitária e triste. Mas quem sabe, quem pode dizê-lo ao certo? No meio de tudo isto, só há uma certeza. Ou melhor, duas. A primeira é que, um dia, todos partilharemos o destino de George, sozinhos ou em companhia. A outra certeza é esta: quem comprou o Toyota pensou ter feito um bom negócio. Senão, não o comprava, diz a lógica material da vida. Morreu George, ficou o Toyota. E um relógio de pulso, da marca Relic. Um desempregado arrematou-o por três dólares, triplicando a base de licitação. 
George M. Bell, Jr.,  1942-2014, assim diz a placa minúscula no depósito das suas cinzas.  E agora, contada a história, ninguém se atreva a dizer que esta vida foi triste ou  vivida em vão. Milhares de pessoas sabem hoje quem foi George Bell, o da fama póstuma, que teve direito a extensa reportagem do New York Times. Apenas por ter morrido, é certo. Mas morrer é pouco? Olhem, fiquem com esta: do pouco que dele sei, George Bell foi um homem melhor do que muitos que por aí conheço.

António Araújo



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