Até aos seis anos visitava com regularidade a minha avó, mãe do meu pai, que morava no Bairro Alto.
Lembro-me que a casa dava para um pequeno pátio no interior do quarteirão para onde se debruçavam mil janelas. O pátio, circundado pela irregularidade da fachada do prédio vizinho, tinha no centro uma fonte circular com peixes amarelos e encarnados que abocanhavam o oxigénio e o miolo de pão que lhes dava.
A casa, gigante para uma criatura pequena, tinha quartos, corredores e pequenas salas. No closet, que separava o corredor da salinha de costura, existia um armário onde eu gostava de me esconder bem no meio dos vestidos da minha avó. Lá brincava aos polícias e ladrões, aos cowboys e aos índios antes de adormecer.
Dentro do armário, a pele da cara roçava os vestidos de Seda, Linho, Lã ou Astracan e era uma sensação boa visualizar os lugares que eles habitavam. O cheiro era sempre igual. O cheiro da minha avó.
Na fachada mais próxima do pátio, aquela que parecia querer engolir a fonte, estava quase sempre de pijama, um rapaz à janela.
Este rapaz, mais velho do que eu talvez cinco ou seis anos, não falava, e volta e meia pediam licença para que ele pudesse apanhar ar no pátio, sentado na cadeira de rodas.
Num tempo em que evitavam que as crianças se confrontassem com a diferença, levavam-me para dentro para que eu não convivesse com o menino especial. Era, assim, a minha vez de ficar à janela, na salinha da televisão, a olhar para ele a fixar o céu, as nuvens e tudo o que parecia estar no alto. Quando um pardal pousava na figueira do jardim da minha outra avó (sim, eram vizinhas) ele acompanhava o voo com o olhar e sorria.
Um dia, apanhou-me especada a olhar para ele. Eu não sabia se havia de fugir ou de acenar e disse olá através do vidro. Abri a porta devagar e subi os três degraus que nos separavam. A cabeça dele inclinou-se devagar sobre o ombro direito e sorriu. Ao sorrir babou-se todo, e com os dois dedos da mão esquerda que mexiam esfregou a baba no pijama e eu vi-lhe um sorriso maior ainda.
Nesse momento, a porta da fachada gulosa abriu-se, e uma sombra correu a rodar 180º a cadeira do rapaz. Ele esperneou, mas os raios presos aos aros dos velhos pneus rodaram mais depressa ainda e lá o arrecadaram de novo.
Nunca mais o vi, mas em cada menino especial o vejo a ele.
Texto retirado daqui.