sábado, 25 de maio de 2013

Retrato de um Portugal desaparecido, rural, duro, resistente, devoto e anticlerical, macio e cruel, atrasado e finório,


Os autores – os melhores, diga-se – fazem eco dentro de nós, deixam rasto. Alguns ressoam na nossa memória e acompanham-nos pela vida fora. 
No meu caso, Aquilino é um deles. Dizer que comecei a interessar-me por ele em virtude da aura política que lhe veio do processo movido pelo Estado Novo, quando da publicação de Quando os lobos uivam, talvez seja exagero. É sabido como uma perseguição da PIDE salazarista dava ânimo a qualquer livro, mas Aquilino não precisava disso. A minha sedução pela sua obra é anterior.
Quando comecei a ganhar gosto pelos livros, Aquilino era então um dos maiores nomes da nossa literatura, se não mesmo o maior, e daí a obrigação de o ler, o dever de o apreciar e o alegre esforço para alcançar esse nível e, consequentemente, essa satisfação, esse puro prazer. Aquilino exigia (e exige) esforço; mas qual o grande autor (o grande amor) que o não exige?
Há quem o acuse de falta de profundidade psicológica, de uma trama pouco densa e estimulante, de falta de dramaticidade nos seus romances, e até de um formalismo já algo tardio, e, portanto, serôdio. Talvez seja verdade. Não esquecer, porém, outros da mesma época, de grande qualidade, como Tomaz de Figueiredo, João de Araújo Correia, por exemplo, onde o que se manifesta é esse gosto da forma a dar a ler uma realidade social e cultural muito forte e nítida, que se lhes impunha e que eles procuravam traduzir e recriar.
É pois o tipo de argumento que, face à obra em causa, sempre me pareceu algo deslocado, difícil de integrar na realidade sistémica que, sobretudo no caso de Aquilino, o seu estilo impunha. Porque ele não era fácil, hoje talvez ainda menos, mas o sabor da sua prosa valia (e vale) bem o trabalho de o ler, compensando-nos largamente de tudo.
Não era de pressas. A sua ação pausada, as suas lentas e gongóricas descrições, os seus largos excursos eruditos ou evocativos, as suas sintaxes envolventes e de frases longas e, sobretudo, o seu léxico rico, vastíssimo, inesperado, inventivo, amiúde extravasando o melhor dicionário, entre o popular, o regionalista e o vernáculo, nunca esquecendo os clássicos (traduzindo, vertendo), nem a latinidade, a sacralidade, a santanidade, e até a liturgia, com sua parafernália de ternos e expressões, numa mistura muito própria que a sua filigrana estilística única e inimitável exigia.
Não era fácil, não. Mas deleitava. Em Aquilino, como disse, o enredo, interessando talvez menos, não é, todavia o livro sem história à moda de alguns atuais, sobretudo da área do já antigo “novo romance”, ou do desconstrutivismo posterior. Não, o enredo existe e prende, mas é sempre submetido ao seu modo de contar, e este à exigência de uma sintaxe elaborada, frequentemente retorcida, ao seu vocabulário que não perde a oportunidade de pôr ao sol termos esquecidos, de endireitar outros, empenados pelo mau uso, de criar muitos, ali mesmo, para a necessidade do momento, e sempre sob a aba inspiradora de sabor oitocentista e setecentista, que as frases e as palavras evocam, e de uma ancestralidade que ressoa nas nossas reminiscências dir-se-ia que platónicas, se não fosse quase escandaloso dizê-lo hoje.

É pois uma escrita sempre subordinada ao classicismo da construção, à riqueza e originalidade do vocabulário, ao gosto de uma descrição que não permite uma prosa dinâmica, e menos ainda desestruturada e desconstruída que a literatura contemporânea nos veio propor.

Aquilino Ribeiro é talvez o nosso último grande clássico. Mas, passados cinquenta anos sobre a sua morte, e depois de tanta experiência, de tantos experimentalismos, artísticos e outros, ainda bem que o foi, e valha-nos isso! É pois um autor para ler devagar, que não se casa bem com a diluição atual duma certa identidade que foi tão nossa, nem com a desestruturação cultural a que se assiste, nem com muitas das regras gramaticais que a moderna literatura começou a praticar, ou a despraticar, nem com a aridez vocabular corrente, nem com a pesporrência da literatura televisiva dominante, nem com a incultura transformada em cultura, nem com o palavrório ininterrupto, embora construído com meia dúzia de palavras. Menos ainda com a moderna vertigem substitutiva dos estímulos, que tira o sabor à vida, e ainda menos com uma era de eletrónicas em que tudo desaparece no momento em que aparece, etc. etc.
Nesta sentido Aquilino é hoje uma força conta a corrente, e, portanto, uma rocha a que nos podemos agarrar. Em suma, um autor com um valor educativo hoje altamente acrescentado.
É, por outro lado, a imagem dum Portugal que existiu, e de que pouco ou nada já resta: rural, pobre, política e economicamente injusto, mas ativo, habitado e animado, demograficamente vivo, humano e humilde, mas teso, finório e boçal, afável e velhaco, troca-tintas e honrado. Disso, desta mistura donde todos descendemos, Aquilino nos dá testemunhos através de tipos humanos inigualáveis, em inúmeras histórias e situações pitorescas, cruéis, hilariantes, traiçoeiras, amenas…
Mas o melhor de Aquilino está no gosto de descrever as paisagens beirãs, as aldeias, as festas, os trabalhos, as pessoas, os bichos; o amor na procura das raízes vocabulares e sintáticas, no trabalho da língua, de sentirmos o formão e a goiva da sua marcenaria fina afeiçoando uma madeira dura e macia, que deixa, depois de bem trabalhada, obra feita. Para durar. E perfeita.
Aquilino Ribeiro é sobretudo um prosador, a gente sente-o a saborear o que escreve e a amar o que descreve e conta. E ao lê-lo, assim como mergulhamos numa portugalidade antiga que nos moldou os ossos e os sentimentos, para o melhor e o pior, e de que andamos esquecidos, ou a tentar fugir, cheios de prosápia, também usufruirmos de uma espécie de reorganização interior, uma reformulação de alma que todo o sentimento estético nos provoca e engrandece.
A grande literatura é essa forma incessante de nos reorganizarmos, de acrescentarmos ao que éramos uma outra nova e mais rica forma de ser, de sentir por nós dentro esse oxigénio que a funda enxada, cavando, fortalece e revigora.
Ler Aquilino é mergulhar nesse Portugal desaparecido, rural, duro, resistente, devoto e anticlerical, macio e cruel, atrasado e finório, que era o mundo que foi o dos nossos pais, avós e tetravós. Para os mais novos é um modo de ter notícia desse tempo perdido, de conhecer os sentimentos, as vozes, os olhares, os valores estéticos e morais de que era feito, e, ao mesmo tempo, ter a experiência de um País profundo, ancestral, resultante da acumulação de muitos sedimentos de gentes, hábitos, culturas, lugares, ocorrências, e que é, desta terra pobre e castigada, muito da sua melhor herança.
Se todos os portugueses, hoje, pudessem ler, gostar e interpretar Aquilino Ribeiro, pelo que significaria de amor à Pátria, de conhecimento dela e de sentido crítico para os seus defeitos e qualidades, que grande, que incomparável mudança nas mentalidades não sofreríamos todos.

João Boavida

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