sexta-feira, 11 de outubro de 2019

Como leitor, o que eu gosto é de ler e dizer, bolas, é exactamente isto que eu sinto e não era capaz de exprimir. Quando um livro me ensina a explicitar emoções que eu sinto, esse é um livro bom.(Lobo Antunes)*


PRÉ-PU

PRÉ-PU

Já atingi uma idade e, além disso, um estado em que, antes de me deitar, devia lavar muito bem os pés, no caso de uma ambulância ter de me levar durante a Noite.
Se, naquela noite, tivesse consultado as Efemérides para saber o que se passava no céu, não teria mesmo ido para a cama. Mas, em vez disso, caí num sono profundo, com a ajuda de um chá de lúpulo, que acompanhei com dois comprimidos de valeriana. Por isso, quando a meio da Noite alguém me acordou, batendo à porta violenta e exageradamente — sinal de mau agoiro —, não fui capaz de recuperar a consciência de imediato. Saltei da cama e pus-me de pé, hesitante, porque ensonada. O corpo alvoroçado não era capaz de pular do sono inocente para a realidade. Senti-me tonta e cambaleei, como se estivesse prestes a perder os sentidos. Por infortúnio, isto acontece-me ultimamente e tem a ver com as minhas Maleitas. Tive de me sentar e repetir a mim mesma, várias vezes: estou em casa, é de Noite, está alguém a bater à porta. Somente assim consegui controlar os nervos. Enquanto procurava os chinelos às escuras, ouvia a pessoa, que antes batera à porta, andando em redor da casa e murmurando de si para si. Lá em baixo, no nicho dos contadores da electricidade, tenho uma embalagem de gás paralisante que Dionizy me deu por causa dos caçadores furtivos e, naquele momento, foi precisamente dela que me lembrei. Lá consegui tactear a lata fria do pulverizador na Escuridão, e, assim armada, acendi a luz do exterior e espreitei pela janelinha lateral para ver o alpendre. A neve estralejou e, diante de mim, apareceu o meu vizinho, a quem eu chamo Bicho-Papão ou simplesmente Papão. Segurava com as mãos nas ancas as abas do seu casaco de carneira, o mesmo com que eu costumava vê-lo a trabalhar em redor da casa. Debaixo da carneira, viam -se as pernas de umas calças de pijama às riscas e umas botas pesadas de montanha.
* lido aqui

Sem comentários:

Enviar um comentário