PRÉ-PU
PRÉ-PU
Já atingi uma idade e, além disso, um estado em que, antes de me
deitar, devia lavar muito bem os pés, no caso de uma ambulância ter de me levar
durante a Noite.
Se, naquela noite, tivesse consultado as Efemérides para saber o
que se passava no céu, não teria mesmo ido para a cama. Mas, em vez disso, caí
num sono profundo, com a ajuda de um chá de lúpulo, que acompanhei com dois
comprimidos de valeriana. Por isso, quando a meio da Noite alguém me acordou,
batendo à porta violenta e exageradamente — sinal de mau agoiro —, não fui
capaz de recuperar a consciência de imediato. Saltei da cama e pus-me de pé,
hesitante, porque ensonada. O corpo alvoroçado não era capaz de pular do sono
inocente para a realidade. Senti-me tonta e cambaleei, como se estivesse prestes
a perder os sentidos. Por infortúnio, isto acontece-me ultimamente e tem a ver
com as minhas Maleitas. Tive de me sentar e repetir a mim mesma, várias vezes:
estou em casa, é de Noite, está alguém a bater à porta. Somente assim consegui
controlar os nervos. Enquanto procurava os chinelos às escuras, ouvia a pessoa,
que antes batera à porta, andando em redor da casa e murmurando de si para si.
Lá em baixo, no nicho dos contadores da electricidade, tenho uma embalagem de
gás paralisante que Dionizy me deu por causa dos caçadores furtivos e, naquele
momento, foi precisamente dela que me lembrei. Lá consegui tactear a lata fria
do pulverizador na Escuridão, e, assim armada, acendi a luz do exterior e
espreitei pela janelinha lateral para ver o alpendre. A neve estralejou e,
diante de mim, apareceu o meu vizinho, a quem eu chamo Bicho-Papão ou
simplesmente Papão. Segurava com as mãos nas ancas as abas do seu casaco de
carneira, o mesmo com que eu costumava vê-lo a trabalhar em redor da casa.
Debaixo da carneira, viam -se as pernas de umas calças de pijama às riscas e
umas botas pesadas de montanha.
* lido aqui
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